domingo, 22 de maio de 2011

Atropelando o humanismo

Atropelando o humanismo

Daniel Piza
O Estado de São Paulo maio/2011

Nunca antes tivemos tanta liberdade, informação e consumo, em termos gerais. Mas o que temos feito disso? A liberdade se confunde facilmente com o egoísmo, com a exaltação publicitária do “eu faço o que quiser” e o medo de assumir compromissos. A informação não produz cidadãos mais conscientes e debates melhores, pois poucos se interessam por ideias gerais e pelo que aconteceu antes de nascerem. O consumo se torna patologia, em que sempre se olha para o que não se tem, ou seja, para o que o outro tem, mesmo que não haja a menor necessidade de ter aquilo. Com tanta valorização do dinheiro e da aparência, fica mais difícil encontrar amizade e amor verdadeiros, que dependem da confiança no outro em momentos difíceis; e se deterioram rapidamente a arte da conversa e o gosto pela leitura, sem os quais é difícil vencer a imaturidade. Em uma frase, o humanismo tem sido atropelado por nossa vida acelerada.

Abro um site noticioso, por exemplo, e lá estão as notícias mais lidas do dia: “1) Ivete Sangalo cai no palco durante show em Petrolina; 2) Rafinha Bastos causa polêmica após brincar sobre órfãos no Dia das Mães; 3) Elefante de filme com Robert Pattinson sofreu maus tratos; 4) Whitney Houston começa a fazer novo tratamento de reabilitação; 5) Justin Bieber se defende de críticas de atriz de CSI”. Parem o mundo, quero descer! Você pode dizer que boa parte da culpa é da mídia, mas note que nenhuma dessas “reportagens” estava no alto da página, onde se costumam pôr as manchetes mais importantes. E você pode alegar que a permanência em cada uma dessas páginas não passa de 30 segundos, que então o leitor não lhe dá tanta relevância, mas quem disse que a maioria vai gastar mais de um minuto em um assunto mais relevante? Celebridades são “seguidas” mais e mais porque parecem ter tudo: beleza, bajulação e bilhões.

Fala-se muito que nossos tempos são marcados pela diversidade, por não haver tendências hegemônicas, etc. No entanto, li há algum tempo Danuza Leão descrevendo um jantar de dez casais, digamos, no qual oito das mulheres usavam a mesma marca de sapato, com a mesma sola vermelha. A pior uniformidade, porém, é a mental. É a que dita que não basta ter meia dúzia de bolsas, não basta ter um carrão, não basta levar as crianças para uma praia; é preciso ter dezenas de bolsas, carrões ainda mais vistosos, fotos das crianças em Paris. Como disse o escritor Pedro Bandeira, o brasileiro dá mais valor a um tênis do que a um livro. Afinal, está disposto a pagar R$ 300 pelo primeiro, mas diz que R$ 40 pelo segundo é caro – assim como diz que não tem tempo para ler, mas passa horas e horas diante da TV ou nas redes virtuais. A capacidade de concentração está em declínio; muitas coisas são feitas ao mesmo tempo, nenhuma com a devida consistência. Exibir vale mais que saber.

Outra consequência desse mundo cada vez mais frívolo se mostra em ambientes de trabalho de todos os tipos. De olho nas promoções e nos bônus, passar o colega para trás começou a ser atitude elogiável, assim como trabalhar mais horas, mesmo que em prejuízo da vida familiar e do ócio. Funcionários dão aos clientes a desculpa de que “o sistema não permite”, incapazes de contestar essas ordens para não ser acusados de não ter “inteligência emocional”. Nas ruas das grandes cidades, a gentileza vai sarjeta abaixo; SUVs fazem uma luta darwinista pela sobrevivência do mais caro. Mulheres optam pelo papel de bonequinhas de ricaços, e há mais e mais estilistas para vesti-las e cirurgiões para repuxá-las. Jovens vivem com os pais até quase os 40 anos, enfileirando cursos e bicos para adiar a responsabilidade de uma carreira decente e continuando a se vestir do mesmo jeito. Crianças dizem que seu sonho é serem famosas, não importa em quê ou como.

A esta altura, alguns leitores podem estar pensando que esse consumismo e essa alienação são produtos do capitalismo ou da modernidade. Mas o fatalismo ideológico, marxista ou culturalista, não leva a lugar nenhum. Sem o capitalismo moderno, em que a busca do lucro é moderada por regras comuns e em parte transformada em benefícios coletivos, não teríamos tanta liberdade, informação e consumo. Nem preciso dizer como liberdade e informação são fundamentais, para evitar tiranias e respeitar diferenças, e mesmo o consumo tem papel importante em nosso conforto e, sim, em nossa identidade. A culpa não é do sistema, mas do que fazemos dele. Para contrapor essa onda de individualismo exacerbado é preciso uma mudança de mentalidade, não o aumento ou a diminuição do Estado, e relembrar os valores das qualidades interiores e da cultura geral, daquilo que não se pode rotular a partir da forma e do status. “Ninguém sabe o que sou quando rumino”, escreveu Machado de Assis, cansado de ser julgado por seu aspecto exterior. Ser não é aparecer.












Oceano processual

Ministro Cezar Peluso fala da sobrecarga de processos no Judiciário e da luta do STF pelo Estado laico

14 de maio de 2011
Laura Greenhalgh - O Estado de S. Paulo

WASHINGTON - Num dos imponentes salões da Biblioteca do Congresso dos EUA, em Washington, entre afrescos, obras de arte e móveis de época, um grupo de juízes brasileiros e americanos reuniu-se por dois dias nessa semana para debater um temário que abrangia de abstrações em torno do conceito de democracia ao relato minucioso de casos de tráfico de influência, desvio de verbas públicas, compra de votos, lavagem de dinheiro e outros delitos rombudos acontecidos em ambos os países. À entrada do salão uma discreta placa informava a natureza do evento: "Brazil-United States Judicial Dialogue".

Realizado pela primeira vez em 1998 e repetido agora por iniciativa do Woodrow Wilson International Center for Scholars e da Georgetown University, esse diálogo não governamental entre Judiciários dos dois países reuniu, da parte brasileira, uma delegação reforçada - dois ex-presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF), os ministros Ellen Gracie e Gilmar Mendes, além do atual, ministro Cezar Peluso, e ainda o colega Ricardo Lewandowski, que acumula a presidência do Superior Tribunal Eleitoral (STE), fora magistrados, professores de direito e advogados de renome. Do lado americano, nem a presença de Clifford Wallace, veterano juiz da Corte de Apelações dos EUA, conseguiu balancear o encontro, que acabou pendendo para o contexto brasileiro.

Nesta entrevista exclusiva concedida ao fim de uma jornada de discussões em Washington, o ministro Peluso admite: a troca de experiências no campo legal é importante, talvez fundamental, desde que respeitadas as diferenças entre os dois países. "É claro que os americanos conhecem o volume impressionante de casos em tramitação na Justiça brasileira. E eles até tentam sugerir soluções. Mas a verdade é que só agora nós começamos a discutir essa crise na sua complexidade", afirma Peluso, cuja missão no momento é levar adiante a chamada PEC dos Recursos, visando a aliviar a sobrecarga de casos em julgamento nas cortes superiores - STF e STJ. Neste ponto, a comparação é acachapante: enquanto os juízes do Supremo precisam decidir em torno de 80 mil casos por ano, seus colegas americanos se concentram no julgamento de apenas uma centena.

O presidente do STF também fala da recente votação por unanimidade sobre direitos da união homoafetiva, reclama maior reconhecimento público de outra votação histórica da Casa, a da liberação das células-tronco embrionárias para pesquisa científica, e diz que o Supremo não tem por que ceder a pressões de grupos religiosos na votação de outras questões polêmicas, como a autorização para aborto de fetos anencéfalos: "Nossa decisão sempre buscará reforçar a laicidade do Estado brasileiro".

Ministro, que impressão fica para o senhor desse diálogo entre magistrados americanos e brasileiros?

Uma boa impressão. Tanto a exposição dos brasileiros quanto dos americanos surpreenderam pela tentativa de buscar pontos de contato, embora os dois lados tenham conhecimento das particularidades de cada sistema judiciário.

Os juízes americanos parecem se impressionar com o alto número de processos tramitando na Justiça brasileira.

Não, eles não estranham porque os números do Judiciário brasileiro são conhecidos internacionalmente, tanto que o juiz Clifford Wallace fez referência a sistemas com volume de casos igual ou superior ao nosso, como o da Índia, com mais de 300 mil processos tramitando anualmente na Suprema Corte. Os juízes americanos procuram entender esse quadro para oferecer sugestões, mas trata-se de uma discussão que só recentemente vem sendo feita pelo Conselho Nacional de Justiça. Tem a ver com mudança de mentalidade na magistratura e na formação dos juízes. Os jovens saem da faculdade razoavelmente preparados para discutir questões do direito, mas sem noção de como lidar com a administração de um processo. Entram num concurso de magistratura, são aprovados e no dia seguinte passam a julgar. Ampliado para todo o sistema, gera-se uma lentidão tremenda.

Isso vem ao encontro da sua missão neste momento, ao apresentar a PEC dos Recursos como forma de descongestionar tanto o STF quanto o STJ, ou seja, grande parte das decisões julgadas pelos tribunais de segunda instância não subiria para os tribunais superiores. Mas com isso o senhor tornou-se alvo das críticas da OAB, que fala até em cerceamento do direito de defesa.

Não aceito a crítica de que o projeto coloca em risco a liberdade do indivíduo. Nos últimos dois anos, num universo de 70 mil processos levados ao Supremo, os recursos extraordinários na área criminal foram 5.700, menos de 10%. Destes, deu-se provimento a apenas 155. Destes 155, 77 foram recursos do Ministério Público, ou seja, o provimento do Supremo foi em favor da acusação, o que agravou a situação dos réus. Houve apenas um caso em que se deu provimento em favor do réu. Um caso! Isso mostra que não há risco para a liberdade do indivíduo. A proposta também não mexe no habeas corpus, como não elimina o recurso extraordinário. Onde está a mudança? Está em que a admissibilidade dos recursos não impedirá o trânsito em julgado. Se alguém for condenado, já vai, a partir da decisão do tribunal local, cumprir pena, mesmo se vier a usar o recurso extraordinário.

Limitar recursos resolveria a protelação no Judiciário?

Não é só protelação, há uma cultura da litigância no Brasil que tem a ver com a formação profissional. Nossos estudantes de direito são preparados para litigar. Existem no currículo das faculdades cursos específicos de conciliação, mediação e arbitragem? Que eu saiba, não. Os estudantes não são preparados para usar instrumentos da negociação. São formados na cultura dos adversários. Ou dos gladiadores, como bem disse o jurista americano Jon Mills.

O estudo Supremo em Números mostra que os grandes litigantes no Brasil são INSS, órgãos públicos federais, estaduais e municipais, bancos e telefônicas. Então, já se sabe quem congestiona o Judiciário.

Há um lado positivo nesses levantamentos, pois permitem que se faça um diagnóstico preciso dos pontos de estrangulamento do sistema. E, ao ficar claro quem são os maiores litigantes, eles próprios repensam suas atividades, de modo a não arcar com essa sobrecarga. Até porque há uma responsabilidade social na lentidão do Judiciário. Não é à toa que nenhum dos grandes litigantes criticou os termos da PEC. Curioso, não?

O Supremo tem sido acusado de hiperativismo no controle constitucional, ao mesmo tempo que reclama do volume de casos com que precisa lidar. Enfim, para que direção aponta a Casa?

O Supremo sempre aponta para os interesses gerais da sociedade. Essa acusação de ativismo não é exclusiva da Suprema Corte do Brasil. Nos EUA, sérios problemas que deveriam ter sido resolvidos no plano legislativo, ou na área administrativa, só tiveram solução social satisfatória com a intervenção da Suprema Corte. Foi assim inclusive com o racismo. No Brasil lidamos com uma Constituição analítica, bem diferente da americana, com seus poucos artigos. A nossa Carta cuida de uma série de matérias que poderiam ser regidas por lei ordinária. E isso tem explicação: a Constituição de 88 foi editada após longo período de autoritarismo, quando os constituintes resolveram regular tudo. Daí o Supremo ser acionado com tanta frequência. E, veja bem, uma vez acionado, ele decide. Isso já foi chamado de "ativismo judicial a convite constitucional", o que é apropriado. Só que o Supremo não dá motivos para acusações de partidarismo. Mesmo lidando com questões políticas, age com independência, ao contrário do que se ouve falar de outras cortes. Eu diria mais: quando decisões da Corte chamam a atenção da opinião pública é porque as matérias tratadas representam divisões dentro da sociedade brasileira. Falo de temas como aborto, células-tronco, fetos anencéfalos, direitos dos homoafetivos.

O reconhecimento desses direitos foi dado pelo Supremo, mas setores contrários continuam a se manifestar...

E como é que uma decisão sobre um tema que divide a sociedade pode não gerar polêmica? Vai gerar, não vai agradar a todo mundo. O fundamental é que a Corte trouxe uma decisão que traz segurança jurídica à sociedade. E uma decisão que também vai ajudar no combate a comportamentos violentos, antissociais, homofóbicos.

Ao decidir por unanimidade essa questão, o Supremo deve ter incomodado setores mais conservadores, mas também agradou aos liberais. Esse julgamento vai ter impacto em outras decisões da Corte sobre temas igualmente polêmicos, como a interrupção da gravidez em casos de anencéfalos?

Uma decisão não muda o Supremo, pois ele decide apegado às suas convicções e normas. Mas uma decisão causa impacto social, porque a sociedade entende que o Supremo não teme tomar decisões compatíveis com a Constituição, a despeito da oposição de certos setores.

Nem pressões vindas do campo religioso podem abalar o julgador?

Não. Ao julgar, o Supremo reforça o caráter laico do ordenamento jurídico. E a independência da Corte vai ao ponto de enfrentar as resistências religiosas em nome da laicidade do Estado.

Foi o que aconteceu na decisão sobre liberar as células-tronco embrionárias para a pesquisa científica, não?

Considero esse julgamento importantíssimo, embora confesse que ali cometemos o mais grave erro de comunicação desde o tempo em que assumi a presidência do STF. O resultado da decisão foi 9 a 1. Só tivemos o voto contrário do ministro Carlos Alberto Direito, falecido em 2009. Mas foi parar na imprensa a versão de que houve três votos independentes da maioria, inclusive o meu. O que fiz no meu voto? Eu disse, e o Ministério da Saúde adotou como orientação, que era preciso estabelecer certos limites éticos para a realização das pesquisas, mas jamais disse que era contra as pesquisas!

Ao decidirem contra a revisão da Lei de Anistia, os membros da Corte atingiram resultado de 7 a 2. Já no caso da Ficha Limpa, o placar foi apertado: 5 a 4. E há decisões unânimes. É possível mapear os momentos em que a Corte vota unida e em que se divide?

Não há isso, diferentemente do caso americano. Há na Suprema Corte dos EUA duas alas definidas: a mais conservadora e outra mais liberal, o que corresponde ao desenho político da vida partidária americana. E também há sempre um juiz que flutua entre um lado e outro. O STF reflete uma largueza de visões que não se prende ao nosso sistema político partidário. Você pode até dizer que há um juiz mais rigoroso em matéria criminal e mais flexível em matéria civil, ou vice-versa, mas para por aí. Eu não chegaria a dizer que o comportamento da Corte é imprevisível. Mas também não é rotulado.

O senhor sente uma ponta de inveja quando vê que seus colegas americanos julgam em torno de cem casos por ano, apenas?

Pois é, a Suprema Corte nos EUA tem poder para examinar um caso e não abrigá-lo para julgamento, inclusive justificando que decisões de outros tribunais sobre o mesmo tema são boas e suficientes para a matéria. O instrumento da "repercussão geral" já permite ao STF fazer isso no Brasil. Equivale a dizer "muito bem, a matéria é constitucional, mas não tem relevância para a sociedade, portanto não vamos tratar disso". Mas ainda não usamos devidamente esse instrumento. Nossa tendência é acolher mais do que seria devido. Como se vê, o Supremo também tem um longo aprendizado pela frente.



Mestiçagens da língua

É falso que a ‘classe dominante’ use a norma culta, como é falso o contrário em relação aos ‘dominados’

21 de maio de 2011
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
O Estado de São Paulo
Quando em 1727 o rei de Portugal proibiu que no Brasil se falasse a língua brasileira, a chamada língua geral, o nheengatu, é que começou a disseminação forçada do português como língua do País, uma língua estrangeira. O português formal só lentamente foi se impondo ao falar e escrever dos brasileiros, como língua de domínio colonial, tendo sido até então apenas língua de repartição pública. A discrepância entre a língua escrita e a língua falada é entre nós consequência histórica dessa imposição, veto aos perigos políticos de uma língua potencialmente nacional, imenso risco para a dominação portuguesa.

Agregue-se a isso, a proibição, com o advento da Revolução de Outubro de 1930, das línguas e dialetos originais falados por milhões de descendentes de imigrantes estrangeiros, especialmente italianos e alemães, vindos para o Brasil, com passagem paga pelo governo daqui, para suprir a carência de mão de obra decorrente da proibição do tráfico negreiro e da abolição da escravatura. Proibição que teve em vista forçar a disseminação, também no cotidiano, de uma língua nacional. Ficou nas exigências linguísticas do ensino formal essa herança de um período de autoritarismo político. Reconheça-se, entretanto, que nosso bilinguismo cimentou nossa unidade nacional, a despeito dos sotaques de múltiplas e suaves resistências a imposições oriundas de várias épocas.

Da repressão linguística ficaram sotaques na fala em português, e mesmo erros de escrita, e até curiosos detalhes: entre descendentes de alemães no Sul é fácil perceber o desencontro entre a respiração e a fala. Os falantes ainda respiram em função dos requisitos respiratórios da língua alemã quando falam em português, o que impõe à fala uma notória dificuldade rítmica. A mesma coisa constatou um linguista e musicólogo austríaco, Gehard Kubik, um dos estudiosos da língua dos negros da comunidade do Cafundó, na região de Sorocaba. Identificando-os como bantos, Kubik comparou seus ritmos respiratórios e gestuais aos dessas populações na África, regulados pelo pilar dos cereais, as mulheres com as crianças atadas às costas, respirando no mesmo ritmo das mães mesmo antes de aprenderem a falar. Dos últimos trazidos ao Brasil, no fim do tráfico, em 1850, os negros do Cafundó conservam essa espécie de DNA da língua.

Uma decorrência da proibição do nheengatu, que aliás, ainda se fala em várias regiões do Brasil, é que quase todos nós escrevemos o português da norma culta, mas falamos português, cotidianamente, com sotaque nheengatu. É o que se nota no deleite em pronunciar as vogais, em oposição ao português de muitas regiões de Portugal, de verdadeira aversão às vogais. Lá se fala “flor”, aqui se fala “fulô”; lá “orelha”, aqui muitos ainda dizem “oreia”. Aqui evitamos os infinitivos com os nossos “está”, “falá”, “cantá” ou com reduções como “tá”, “tô”, “né”. Sem contar o caso emblemático do “você”, incorporado à fala gramaticalmente correta, mas que é deturpação nheengatu do “Vossa Mercê”, da sociedade colonial e estamental, os cativos e os ínfimos, ainda que livres, pondo-se de pé e tirando o chapéu para dirigir-se às pessoas socialmente superiores. Tratamento que teve duplo percurso: na cidade virou “você”, na roça e nas regiões caipiras virou “mecê”. Nas cidades o “você” tornou-se pronome substituto do “tu”, da segunda pessoa do singular. Na roça, o “mecê” ainda é tratamento de terceira pessoa, resquício de hierarquias sociais antigas, ficando para a segunda pessoa a variante “ocê” ou o “vancê”.

No livro questionado, porém, o reconhecimento da legitimidade da fala popular se baseia numa premissa completamente falsa: “A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros”. É falso que a “classe dominante” use a norma culta. Frequentemente, empresários urbanos e rurais tropeçam nas normas da língua. Basta acompanhar falas e debates da Câmara e do Senado para testemunhar o reiterado atropelo de nossa língua nacional pela elite do poder. Sem contar que durante oito anos um presidente da República valeu-se de suas próprias regras linguísticas para falar à nação e ao mundo.

É falso, também, o contrário, em relação aos “dominados”. Pesquisador em áreas sertanejas do país, durante muito tempo ouvi suas maravilhosas alocuções, sobretudo de analfabetos, no Maranhão, no interior de Minas e de São Paulo, no sertão do Nordeste, de Goiás, do Mato Grosso, do Pará, falando um português impecável, belo, rebuscado, barroco, a mesma língua dos sermões do padre Vieira. Ainda me lembro da resposta de um morador de povoado do sertão maranhense, um negro velho, de postura e viso patriarcais, a barba longa, mas rala, quando lhe perguntei se tinha chegado ali com toda sua família: “Não, meu senhor. Eu vim pr’aqui com toda minha linhagem”.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS, PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É AUTOR DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM SIMPLES (CONTEXTO)





''Polacas'' do Rio ganham nome em cemitério

Criado em 1916 por prostitutas polonesas, local polêmico passou anos esquecido
18 de maio de 2011 Felipe Werneck / RIO - O Estado de S.Paulo
                                                                               Fabio Motta/AE

Inhaúma. 95% dos túmulos já estão identificados no local, que foi tombado pela prefeitura carioca em outubro do ano passado

A porta está trancada, o repórter toca a campainha e é recebido pela funcionária que cuida da limpeza do Cemitério Israelita de Inhaúma, na zona norte do Rio. "É muito difícil vir alguém aqui", ela comenta. "Não é igual a um cemitério comum. Ninguém visita as polacas." Fundado em 1916 por imigrantes polonesas marginalizadas por serem prostitutas, o local abriga cerca de 800 túmulos. Após décadas de deterioração e esquecimento, as sepulturas começaram a ser reformadas no ano passado. Segundo o presidente do Cemitério Comunal Israelita do Caju, Jayme Salomão, que também administra o de Inhaúma, 95% dos túmulos já estão identificados. Além da pintura, eles receberam placa branca de mármore com estrela de Davi no centro, o nome de quem está ali sepultado, a data do óbito e o número que representa na cronologia do cemitério.

Não houve divulgação. A iniciativa ocorre 15 anos após a polêmica suscitada pela publicação do livro Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua (Editora Imago), fruto de dissertação de mestrado da historiadora Beatriz Kushnir, atual diretora do Arquivo Geral da Cidade.

Segundo ela, em 27 de outubro o prefeito Eduardo Paes assinou decreto determinando tombamento definitivo do cemitério. Segundo o documento, "quaisquer intervenções físicas deverão ser previamente aprovadas pelo Conselho de Proteção do Patrimônio Cultural". Nas justificativas do decreto, o local é considerado "marco particular no âmbito dos campos santos da cidade por ter sido criado por mulheres que, em um ambiente hostil, se uniram para garantir sua sobrevivência". Um dos objetivos da decisão foi justamente "garantir a essas mulheres uma memória que não as condene eternamente".

Salomão atribui a demora ao "trabalho minucioso" para levantar os nomes e diz que foram gastos R$ 300 mil na reforma. Agora, ele pretende investir "mais R$ 1 milhão" em um polêmico "projeto de revitalização". Para isso, vai pedir à prefeitura a reativação do cemitério. O objetivo é que a eventual venda de novos túmulos gere receita para bancar a manutenção. Cerca de metade do terreno está livre, avalia.

Salomão insiste na ideia - criticada por Beatriz - de separar os túmulos das polacas por "cerca viva". "É para preservar a história do passado sem chocar. Se juntar tudo, quem for ao cemitério não vai entender nada." Segundo ele, a cerca receberia plantas de 30 a 50 centímetros. Seria uma forma de atender à ala judaica mais ortodoxa, que defende enterro de prostitutas e suicidas junto ao muro de cemitérios. Salomão nega. Segundo ele, a ideia é "criar um museu vivo". "Hoje, aquilo fica fechado o ano inteiro. Queremos que os túmulos sejam visitados. É um lugar sagrado. O objetivo é preservar."

Sítio histórico. Para Beatriz, trata-se de tentativa de "expurgo" da memória dessas mulheres. "Eles podem fazer tudo o que for necessário apenas para manter como sítio histórico. Não podem fazer mais nada para enterrar outras pessoas." Localizado na Rua Piragibe, 99, o cemitério fica colado na Favela do Rato Molhado. "Tem milícia ali. Tirando eu, duvido que outro judeu queira ser enterrado lá", diz Beatriz.

Vice-presidente da Federação Israelita do Estado até novembro e presidente da sinagoga Beyruthense, Salomão reconhece que há preconceito entre representantes da comunidade judaica, mas afirma que não há respaldo institucional para isso. "Pode ser que algumas pessoas, sim, mas eu acredito que não exista preconceito. Se existisse, não falaríamos em reativação do cemitério. A ideia da revitalização é dar continuidade."

A historiadora defende arborização e preservação do local como está. Para ela, a reforma foi uma vitória. "Mas fico com pena de não ter sido como em São Paulo (veja ao lado), onde a comunidade judaica foi muito participativa, não se fez nada às escondidas, houve inauguração das lápides. Aqui tem muito mais caráter de imposição por circunstâncias do que vontade própria."

O livro de Beatriz contabiliza 797 sepulturas. Na ocasião - a dissertação foi defendida em 1994 e o livro, lançado dois anos depois -, ela localizou duas descendentes de polacas. "Muitos não sabem ou preferem não se meter nisso", conta. Segundo a Federação, foram localizadas 807 durante a reforma. Criado a partir de um modelo associativo, o cemitério de Inhaúma abriga corpos de mulheres, homens e crianças. "Não é porque foram prostitutas que elas não eram casadas. E não necessariamente o marido era cafetão; elas também eram cafetinas (donas de prostíbulos)", explica Beatriz.